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Artigos

Aposentadoria e Trabalho Insalubre

06 Abril 2021

Com o advento da Lei 13.846/2019 – que inseriu o parágrafo IX, no artigo 96 da Lei 8213/1991 -, a averbação, para fins de comprovação junto ao serviço público, do tempo de trabalho realizado em condições insalubres, na iniciativa privada, passou a depender de expresso detalhamento da atividade laboral na Certidão de Tempo de Contribuição (CTC), emitida pelo regime de origem.

Assim, alguns órgãos da Administração Pública – especialmente os prestadores de serviços médicos – têm exigido a apresentação de CTC com a anotação da condição insalubre de data a data, para que reconheçam como especiais os períodos laborados sob o regime previdenciário próprio dos servidores (RPPS) ou no regime geral da previdência social (RGPS).

Grosso modo, a Administração tem argumentado que – na atual redação do art. 57 da Lei 8.213/1991 –, não há autorização legal para que se reconheça a insalubridade no trabalho sem que tal condição esteja atestada na CTC.

Tal interpretação mostra-se desastrosa, pois tem criado problemas para milhares de servidores, que não conseguem se aposentar, mesmo tendo cumprindo mais de 25 anos de serviços em condições insalubres.

Veja-se o caso dos profissionais de medicina, por exemplo. Sabidamente, a profissão de médico contava até meados de 1995 com presunção de insalubridade, nos termos dos Decretos 83.080/1979 e 53831/64, sendo dispensável a comprovação de

exposição a agentes prejudiciais à saúde. Nada mais lógico, afinal, o contato desses profissionais com agentes nocivos é diário.

Entretanto, com o advento da Lei 13.846/2019, que estabelece a exigência de anotações específicas outrora dispensadas, o tempo de trabalho em condições insalubres de médicos de todo país tem sido peremptoriamente ignorado por ocasião de cálculos de tempo para aposentação. Com isso, violam-se direitos adquiridos e exigem-se períodos adicionais de trabalho de profissionais que, efetivamente, já contariam com tempo suficiente para passar à inatividade.

Hoje, o desafio que se impõe é a mudança de rumos na forma de a Administração decidir sobre o assunto – muito mais preocupada com aspectos formais que com as realidades circunstanciais.

Evidentemente, formalidades criadas em 2019 não podem impor prejuízos a milhares de médicos e simplesmente ignorar que, até 1995, tais profissionais desempenharam suas funções em condições presumidamente insalubres pela já referida força de lei. Em outras palavras, a anotação específica de tempo de insalubridade na CTC como condição para deferimento de pedidos de aposentadoria especial não se aplica a períodos anteriores a 28/04/1995.

Contrariar esse entendimento, levando ao extremo recente exigência de anotação específica na CTC, parece ofender a necessária aplicação das leis segundo sua função social e, ademais, prestigiar métodos interpretativos completamente dissociados da leitura sistemática da legislação, apegando-se, exclusivamente, à necessidade de anotação a respeito da condição especial, mas se esquecendo de que, em tempos prévios a 1995, tal característica era presumida para os profissionais médicos.

Portanto, não deve o intérprete aplicar o art. 96, IX, da Lei n. 8.213/1991 de forma isolada, isto é, menosprezando as disciplinas preconizadas pelos Decretos 83.080/1979 e 53.831/1964. É importante lembrar que a aplicação do direito é uma técnica que impede a fragmentação normativa para se buscar determinada conclusão. Pelo contrário, requer visão sistêmica, de modo a verificar qual a correta solução para o problema apresentado.

Sobre o assunto, tanto o Tribunal de Contas da União quanto o Conselho da Justiça Federal já se manifestaram favoráveis ao reconhecimento da presunção de insalubridade para os servidores que, antes de 1995, tenham desempenhado alguma das funções discriminadas nos Decretos 83.080/1979 e 53.831/1964. Nesse contexto, nunca é demais relembrar que, por força dos arts. 23 a 26 da LINDB, a Administração Pública, visando à eficiência, deve manter a uniformidade de tratamento sobre matérias administrativas, sobretudo para evitar a judicialização de temas que poderiam ser resolvidos de modo menos custoso para o Poder Público.

Infelizmente, não parece ser esta a norma orientadora das decisões emanadas por alguns setores do serviço público. Embora a Administração reconheça ser extremamente formalista a exigência de anotações expressas na CTC para períodos anteriores a 1995, continuam a insistir na tese de que suas decisões simplesmente observam imposição legal que não poderia ser afastada por liberalidade administrativa.

Assim, praticamente exige que servidores recorram ao judiciário a fim de ter reconhecidos direitos líquidos e certos. Sobretudo, são muitos os precedentes, espalhados pelos Tribunais pátrios, afirmando que a atividade médica, até 28/04/1995, goza de presunção de insalubridade. Ou seja, até 1995, atividades médicas são insalubres por si só, sendo, além de ilógico, um formalismo exagerado, odioso capricho que não se sustenta no ordenamento jurídico brasileiro, requerer que a palavra “insalubridade” conste da CTC daqueles que, por óbvio e por lei trabalham sob constante exposição a agentes nocivos à saúde.

Renato Feltrin Corrêa – Advogado e mestre em Poder Legislativo Correio Braziliense, caderno Direito & Justiça, edição de 02 de março de 2020

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